Tudo corre bem nas férias na praia. É noite e estou com Lídia no show que acontece no terreiro da pousada. O apresentador anuncia o próximo músico, D2, que convida um grupo de deficientes físicos que, por terem seus membros inferiores deformados, pernas atrofiadas, se arrastam até o palco para uma participação especial. O público os observa impressionado - desvia o olhar, sorri - espantado. Não apenas pelo preconceito velado que existe na alma de qualquer ser humano hipócrita que se depara com uma deficiência física, mas também pelo ar sombrio e pelo semblante carregado de dor e ódio que esses homens levam em suas faces. A música começa agressiva, um funk carioca pesado como nunca ouvira. No mesmo instante, se erguem os deficientes, agora em pernas e braços musculosos, desferindo socos e chutes, tão agressivos quanto o som, em todos os que estão à volta, seguranças, público, hóspedes, funcionários da pousada. A voz do cantor rasga a batida do funk assim como é rasgada a pele de quem apanha. Tento me esquivar da confusão, protegendo-a entre meus braços. A selvageria é tamanha que não sei mais de quem me defender. Alguém saca uma arma e atira três vezes. Um tiro acerta um rosto, outro, talvez um corpo. Como os alto-falantes, meu peito vibra, o ar me falta. É o medo da morte.
quarta-feira, 7 de janeiro de 2015
sexta-feira, 5 de julho de 2013
25
Sentado ao balcão, como meu pão com carne e ovo insosso e bebo minha cerveja nem tão gelada. Ele, gordo, chega agitado com um prato onde dois rissoles repousam sobre um guardanapo engordurado e senta ao meu lado, dois bancos à direita. Devora os salgados em quatro ou cinco mordidas. Olha para os lados, para mim. Finjo que não percebo. Olha para os lados, para mim. Finjo que não percebo. Olho para ele, ele para o outro lado, nervoso. Completo meu copo, que espuma. Dou um gole que levemente me trava a goela. Ele, rápido e desajeitado, arranca meu iPod, que ouvia pensando no prazer da solidão daquele momento. Sai apressado em direção à porta. Quebro a garrafa no balcão e a lanço em suas costas. Barulho estalado, gostoso. Sua bochecha se abre como massinha no piso frio e sujo. Naquele ponto de suas costas, onde repousa tranquilo o pedaço da garrafa, brota um círculo irregular de sangue e banha.
sábado, 13 de abril de 2013
24
O cenário é o interior de um palácio indiano. O publico está ansioso para ver a apresentação dos palhaços de perna de pau. As crianças se amontoam nas galerias. Os palhaços se reúnem para combinar os últimos detalhes. Vagner, já paramentado com pernas, maquiagem e fantasia, entra no cômodo que serve de coxia e se dirige ao mezanino para dar início ao espetáculo. As crianças observam excitadas em direção ao mezanino. Ele desponta com seu sorriso de palhaço em passos largos e acelerados, um além da mureta. Queda... Perna, chão, costas, chão, cabeça, chão. Vagner está desacordado. Crianças berram, olham paralisadas, correm, se viram. Os outros palhaços se apressam para tentar ajudá-lo. Eu grito na coxia para que chamem o resgate. De sua cabeça corre o sangue. Da minha, a última esperança.
domingo, 7 de abril de 2013
23
Eu e uma pequena multidão observamos do pier pai e filha felizes em um barquinho de madeira. A menina sorri com o pai, respondendo eufórica aos acenos que recebe, transbordando a emoção de estar pela primeira vez em um barco, flutuando sobre as águas. Uma enorme calda, linda e acinzentada, emerge do mar. Uma mistura de medo, espanto e encantamento preenche meu peito e congela minh'alma. A menina ri alto, o barco balança forte, o pai teme a morte. Uma espécie de jubarte com um focinho afinado como o de um golfinho salta e mergulha novamente agitando o mar e molhando a plateia, que corre, grita e se tromba sem saber o que fazer com o pânico que a inunda. Outras caldas, talvez dezenas delas, tão grandes quanto a primeira, cortam o manto verde do oceano, balançando cada vez mais forte o barco. A menina se inclina, o pai desesperado não a consegue segurar. Ela cai e é engolida pelas ondas. Um segundo é suficiente para eu me decidir a saltar e mergulhar por entre o chicotear das caldas e o alvoroço do mar. Resgato a menina e a deito no chão de madeira do pier. Seu rosto delgado está pálido. A vida parece ter se esvaído de seu corpo. Inicio uma massagem cardíaca e uma respiração boca a boca, como aquela que eu assisti em um curso. A menina tosse e cospe água.
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
22
O leão sem juba se aproxima e me diz com voz quente e ameaçadora: "se cair na minha cela, tu tá fudido...". Termina o julgamento. Sou conduzido pelos guardas a uma das jaulas. À porta, circunda, ansioso, o pérfido felino. Temo pelo aproximar de minha morte. Baratinadamente, ele tenta entrar, mas os guardas frustram suas tentativas. Fecham as grades. Corre em meu peito uma sensação de alívio. Da terceira jaula, o leão sem juba, deitado sobre suas patas, mira-me fixamente com um olhar carregado de ódio.
quarta-feira, 29 de setembro de 2010
21
Noticiário marrom da TV: (...) O jogo contou com a presença de diversas celebridades. Campeãs mundiais de vôlei de praia, as veteranas %$?#! e *@%$& armavam as jogadas para desfecho dos artistas, que eram ovacionados pelas tietes sempre que cravavam a bola na quadra adversária. Já o cantor Djavan não mostrou muita afinidade com a bola. Porém, pelos olhares e sorrisos maliciosos que lançou sobre %$?#!, deixou claro que, além de música, ele entende muito é de sedução.
20
Noticiário da TV: Ondas gigantes, com cerca de 10 metros de altura, castigam o litoral. Um banhista teve a cabeça arremessada fortemente contra uma parede de cimento rústica e sofreu ferimentos graves. Eu e Lídia estamos numa loja de roupas femininas, localizada no Jardim Utinga. Ela passeia pela loja e me deixa incumbido de escolher lingeries para ela. Apesar de grande, a loja é simples e vende peças sem sofisticação, mercadoria barata, o que dificulta minha escolha, pois conheço o gosto refinado de Lídia. Escolho uma calcinha alta, bege; um soutien verde-água com renda; e um biquíni amarelo de algodão. Receio que ela não goste de nada. Caminho pela loja à sua procura e encontro, na entrada da escada que leva ao piso inferior, Tereza, o Dr. Ivan e a filhinha. Nos cumprimentamos com apertos de mão, meio-abraços e sorrisos.
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
19
É noite. Transmutado em minha forma parte homem, parte cão, parte fêmea, caminho rápido, mal tocando os pés no chão, na calçada que margeia a avenida da praia. Acompanham-me dois animais, talvez dois cães, ou quase-cães. Cada um de um lado. As pessoas com quem cruzo me olham assustadas, desviam os passos, às vezes o olhar. Estou indo me encontrar com outra besta. Sei que ela me aguarda em um edifício em obras. Caminho toda a extensão da avenida, até o Forte, sem encontrá-la. O dia começa a amanhecer, tornando o céu mais claro, acinzentado. Em minha forma humana, com meu pai e irmão, volto meia quadra e entro no prédio com o intuito de fazer o meu plano de saúde. Ficamos na terceira posição da fila. O atendente chama o próximo. Meu irmão se posiciona no balcão. O funcionário pede algumas informações e ele explica que sou eu o interessado. Me aproximo e ele inicia o atendimento. Informo que o plano é Omint.
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